Memórias Africanas

ByIsaías Gonçalves Afonso

15 de Fevereiro, 2025

À medida que a idade avança, esboça-se paulatinamente um recurso sobre a vivência no passado. A memória é uma extraordinária faculdade com uma dupla função. Ela possui a possibilidade de recordar esse passado e, por outro lado, provocar o esquecimento, de forma a aliviar o peso sobre ela, uma vez que a mielina do cérebro também vai diminuindo a quantidade e a qualidade do líquido que irriga as suas células.

Estive uma dúzia de anos, dos quais três como militar na guerra, oficial paraquedista, e nove como Director da Escola Primária n° 232, no Bairro da Cazenga, da cidade de Luanda, com 2800 alunos e 70 professores, o que constituía a maior escola desse ensino, desde o Minho a Timor. Depois, na Samba, criei o Colégio José Régio, do ensino secundário com cerca de 400 alunos, e um laboratório de línguas, único em Angola.

Regressado ao país que me viu nascer, após o processo de descolonização, completei a licenciatura em História na Faculdade de Letras de Lisboa, depois de ter adquirido o bacharelato na Universidade de Sá da Bandeira, hoje cidade da Huíla. Terminado o curso em 1977 rumei a França em Novembro desse ano, por concurso documental, para aí lecionar Língua e Cultura Portuguesas.

Colocado em Lyon, durante quatro anos, fui convidado para dirigir o Sector de Orientação Pedagógica para a Cultura da Coordenação Geral do Ensino do Português em Paris, serviço da Embaixada de Portugal na capital francesa.

Em boa hora, conheci um amigo, com um ADN angolano infiltrado no corpo e na alma, e moramos na mesma rua, no mesmo prédio, no mesmo bairro da capital gaulesa. Cedo descobrimos um hábito comum, que era a leitura de jornais e a escrita neles. Alcídio Kuma Gomes criou em Paris a revista lusófona Notícia e logo me convidou para nela escrever artigos, o que fiz com prazer. Para a citada revista não se confundir com a publicada em Luanda, da autoria de Charulla de Azevedo, mudou então o título para revista TAKI TALÁ. E nesta escrevi variadíssimos artigos, nomeadamente do âmbito da educação, que se praticava em França às crianças e jovens descendentes dos portugueses imigrados.

Consolidou-se a amizade em almoços e jantares com as variadas conversas sobre a prodigiosa Angola, considerada a joia da coroa do Império. Numa dessas refeições lembrámos o passado militar, onde tive oportunidade de lhe lembrar algo estranho, com situações rocambolescas, como era deixar cunhetes de balas, cobertores, na picada, destinadas aos guerrilheiros de Jonas Savimbi, bem como rações de combate, para que na actividade guerrilheira fustigassem os seus considerados inimigos e que eram os elementos do MPLA.

A continuidade da nossa presença em Paris, tive a oportunidade e através do Alcídio Gomes, conhecer elementos ligados à UNITA, depois desta ter sido vencida em Angola, pelo MPLA com armas jugoslavas e outras deixadas em Luanda por barcos que ali atracavam.

Em França vim a conhecer um dos líderes da UNITA, que foi ISAÍAS SAMAKUVA, e o General GATO. Este último com o apoio de Fátima Roque, que em Portugal me forneceu o número do telefone para que eu o pudesse contactar em Paris. E deu-se um caso de humor, quando lhe telefonei para um possível encontro. Perguntei-lhe se era o General Gato ao que ele respondeu que era o RATO. Rimos ambos e foi mais um conhecimento. Contudo, com o ISAIAS SAMAKUVA a amizade foi mais longa, uma vez que o trio se encontrou em restaurantes e o Alcídio Kuma Gomes conseguiu que num jantar ele aceitasse uma entrevista que eu publiquei no jornal O DIA, dirigido por Silva Resende, em Lisboa.

Os encontros continuaram e cheguei a transportar no meu carro o Samakuva e o Alcídio em viagens a Antuérpia e Luxemburgo, a solicitação deste último. Foi assim que fiquei a conhecer também o Armando Pilartes. Dava-me prazer este tipo de encontros de natureza política e a este também se juntou o cantor BONGA, até porque o Gomes contratava cantores africanos para atuarem em Paris, e recordo um deles no Bataclan, que viria a ficar famoso pelos piores motivos, devido a um ataque de terroristas muçulmanos, onde foi assassinada uma antiga aluna minha.

Vivi como Alcídio Kuma Gomes momentos que nunca vou esquecer, em contatos sempre com Angola na agenda, viajei para o Dubai, Paquistão, Tailândia e até à Ilha caribenha de Guadalupe.

Dado o seu conhecimento do mundo empresarial, organizou uma série de iniciativas em Paris, para estar sempre ligado aos meios políticos. Neste tipo de festas, convidou o Eusébio, o Fernando Gomes, o Manuel Fernandes, o Carlos Lopes e outros que à memória não me acodem.

Quando da morte do Presidente Mitterrand, esteve no Hotel Crillon com o MNE de Portugal e que viria a ser o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. Esteve com Mário Soares, António Guterres, e o Secretário Geral da ONU, Boutros Boutros Ghali. Eu fiz de fotógrafo.

Outra ocasião, no Hotel Royal Monceau, fez uma conferência de imprensa em Paris, o líder da UNITA, Jonas Malheiro Savimbi. Alcídio Gomes e eu estivemos presentes. A certa altura, Alcídio fez uma pergunta a Savimbi e este logo respondeu, quando o Alcídio se levantou da cadeira, e disse: “Agora vamos ouvir o branco mais preto de Angola”. Alcídio Gomes arranjou-me uma entrevista em privado com o líder da UNITA e cuja conversa publiquei no jornal O DIA.

O meu amigo de longa data, general Pezarat Correia, disse-me sempre que eu andava enganado em relação à UNITA, acredito que o Alcídio Kuma Gomes também, e após a morte de Jonas Savimbi, tudo quanto ele previra aconteceu, logo se deu conta da saga de traidores que o rodeavam, e foi o Alcídio Kuma Gomes que me fez ver as coisas. A partir daí entendi muita coisa que me geraram confusão, ainda hoje quando nos encontramos, Angola é o tema de conversa.

Professor Doutor Isaías Gonçalves Afonso

Alentejo – Portugal